segunda-feira, 5 de março de 2012

O conto: A igreja do Diabo


O CONTO A IGREJA DO DIABO
Por: Noly Oliveira

O conto A Igreja do Diabo faz parte do livro Histórias Sem Data juntamente com Anedota Pecuniária; Fulano; A Segunda Vida; Noite de Almirante; Manuscrito de um Sacristão; Ex Cathedra, sendo lançado em 1884 pela editora Garnier.
Em resumo podemos citar que o conto A Igreja do Diabo é dividido em quatro capítulos. No primeiro De uma idéia mirífica retrata que segundo conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja, pretendendo-a única e com todos os ritos que esta possui, com o objetivo de combater as outras religiões e destruí-las de uma vez, pois se sentia humilhado com o papel desempenhado durante séculos, vivendo sem regularidade dos descuidos e obséquios humanos. Para tal assegura que “Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.” Se dirigindo a Deus, saiu do inferno e foi aos céus, comunicar-lhe a idéia e ao mesmo tempo desafiá-lo.
No segundo, Entre Deus e o Diabo, Deus, em companhia dos serafins, recolhia um ancião e diante do Diabo param a atividade e Deus deteve este a porta do céu para indagar-lhe o que queria. O Diabo rindo afirma que vem em nome de todos os Faustos do século e dos séculos e que espera Deus terminar sua boa ação junto a um dos últimos que virão ter com Ele, pois em breve o céu estará como uma casa vazia, por causa do preço alto a ser pago pelos Homens. Afirma que irá “edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja”, “lançar a minha pedra fundamental” e avisa para que não seja acusado de dissimulação, no que é advertido pelo Senhor através da observação que este viera comunicar e não legitimá-la e não se opõe a tal idéia exigindo apenas que lhe diga o motivo para tão somente agora tomar tal posição. O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo e afirma, numa parábola, que o “manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...”. O Senhor em murmúrio afirma ser tal fato é uma velha retórica, assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo afirmando que tal atitude é esperada de um ser como ele e que todas as suas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado, tendo ele após uma vida honesta, uma morte sublime, pois num naufrágio abriu mão de sua própria vida em favor de um jovem casal de noivos dando-lhes a tábua de salvação e mergulhando na eternidade sem fazer disso um palco, pois estava sozinho e indaga ao Diabo onde estava a franja de algodão e este afirma ser o espírito que nega tudo e afirma que a “misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...”. Impaciente com o Senhor pedi que o Diabo se vá e ante a tentativa deste proferir alguma coisa mais, impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
No terceiro A boa nova aos homens, Uma vez na terra, o Diabo não perdeu tempo, espalha a doutrina nova e prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos sem esconder quem era ele, o próprio gênio da natureza, o verdadeiro pai, cujo nome dado tinha o objetivo de afastar os homens e por isso queria retificar a noção que tinham dele e prometia tudo a fim de excitar o entusiasmo e manter as multidões próximas e sob seu controle e doutrina sendo por vezes sutis, outras cínicas e deslavadas. Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas reabilitando as vistas como malefícios. Para dar melhor suporte cita Homero, Rabelais, Galiani, ou seja, amparasse em razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude. Prometia criar a vinha do Diabo e com eloqüência, moldava a sua percepção as noções conceituais (a exemplo da venalidade, disimularidade, hipocrisia) fazendo amar as perversas e detestar as sãs, retificava e combatia a todas as máximas, sendo o amor do próximo um obstáculo grave à nova instituição. Teve o Diabo que as vezes efetuar apólogos pois alguns discípulos achavam que algumas explicações, por metafísica, escapava à compreensão das turbas.
Por fim, no quarto capítulo intitulado Franjas e franjas, A previsão do Diabo concretizou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova cuja doutrina propagava-se por todo o globo. O Diabo alçou brados de triunfo. Todavia, longos anos depois, o Diabo percebeu que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes ainda que não fossem todas e nem integralmente. A descoberta espantou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, raivoso, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: — Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.
Dentre os personagens principais podemos destacar: Deus, representando do Espírito Santo, e Diabo, representando do Espírito Negador.
A personagem Deus, Espírito Santo, que possui os caracteres físicos humanos, mostra-se sensível, compassivo, amoroso, a personificação do Bem, detém firmeza e certa impaciência diante da ação do Diabo (“— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!”) e grande conformismo frente à contradição dos seres humanos, justamente por saber que o Homem tem o direito de escolher errar, permanecer no erro e/ou arrepender-se.
O Diabo, Espírito Negador, que também possui o corpo físico igual ao humano, sentimentos de ódio, vingança, zombaria, malícia, sagacidade, a personificação do que é contrário ao Bem, é descrito com imagem "magnífico e varonil" que num misto de comunicado e desafio conta a Deus sobre a idéia de criar uma igreja pautando-se para tal na manipulação da liberdade que os pecados humanos aparentam possuir e em nome dessa liberdade, o livre arbítrio, é que o Homem tanto se contradiz.
Dos personagens secundários podemos destacar: o ancião (homem socorrido no céu que aparenta estar enjoado, aborrecido, diante da negação das ações voltadas ao amor, caridade, bondade), os serafins (possuem as asas pesadas de fastio e sono a exemplo dos braços dos Homens após dia de trabalho), Miguel e Gabriel (detiveram sobre o Senhor o olhar de súplica, solicitação, para por fim a conversa como ações que possuem caracteres humanos) e os seres humanos são percebidos misantropos, levianos, insensíveis, interesseiros, mesquinhos, egoísta, fingidos, hipócritas, inconstante, inseguros, influenciáveis, dentre várias outras denominações que deixem perpassar destaca-se dado ao desfecho final a característica de contraditório.  
As obras Machadianas primam pela verossimilhança, ou seja, pela idéia de que o escritor possui de aproximar os personagens e o enredo ao máximo da realidade (objetiva e subjetiva) levando-o a renunciar o imaginário, o fantástico, tão comum as narrativas românticas. Para Machado de Assis o leitor precisa confiar na veracidade do texto de modo que se veja envolvido a ponto de permitir-lhe tirar suas próprias conclusões a respeito de determinado aspecto abordado, estando à realidade ali, diante a ti, naquelas páginas.
Nota-se a preocupação com a ambientação do conto, característica de fácil percepção. O diálogo efetuado entre as personagens principais inicialmente se passa no céu, sendo o desenrolar dos fatos no ambiente urbano, terreno, local habitam as personagens condicionadas ao meio físico e social concretamente, vivendo a valorização do material, do cientificismo, da objetividade, dos conflitos, dos dramas socioculturais, morais, econômicos, políticos, éticos, religiosos.
Há nos personagens machadianos um realismo psicológico ou interior profundo e nesse conto, retrata o quanto o Homem pode ser influenciável, corruptível, suscetível. Logo, transparece neste conto uma “nova teoria sobre a alma humana" pautada em história, cultura, alegoria e mito.
Perfaz uma inversão quando o Diabo se presta a construir uma doutrina, uma igreja, ao moldes de Deus, afirmando ser o fator que distingue as duas é a profunda negação e para tal nega o que reflete a igreja, Deus e sua moral, caridade, bondade, amor. Diria que recorda a relação entre Sartre e Nietzsche ao buscar as motivações internas, secretas e contraditas, que se escondem nas ações humanas representando, além e aquém, as aparências para expôr a avareza e as contradições.
Segundo aponta o Diabo, quando sobre o escudo de Deus o Homem torna-se mais forte e tende a recusar todos os princípios imorais e quando mais próximo dele a tendência é extinguir as diferenças entre virtude e vício. Em determinada passagem percebe-se que parece haver uma repetição da passagem bíblica onde Deus expulsa o Anjo Decaído do céu.
 No que tange a crítica, segundo Bariani (2007),

O próprio Machado foi um dos precursores da crítica, já na década de 1870 escrevia sobre a produção literária no Brasil. De fato, a crítica como ofício e a maturidade do romance literário (coroada na obra de Machado) são contemporâneos no Brasil; enquanto o escritor produzia sua obra, a crítica literária construía seus sujeitos e instrumentos. No bojo do amadurecimento e consolidação da literatura brasileira como produção autônoma, advinha a crítica - como pretensa consciência e autocrítica desse processo. (p.27)

Dentre os críticos e estudiosos da época que analisaram as obras de Machado de Assis estão Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo. (FERREIRA, 2007).
Destes destacamos Sílvio Romero, defensor da eugenia transformadora (ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento genético da espécie humana, entende-se neste contexto histórico como branca) e por sua tenacidade em reduzi-lo a um mero escrito reprodutor de idéias sem cores e saltos, artificial, pessimista, sossegado e transgressor da ordem determinista, após sofrer uma atrevida crítica do próprio Machado, notado como o primeiro e maior crítico da época, acabou por colocá-lo ainda mais em evidência, saindo, por assim dizer, “o tiro pela culatra”. Destaca-se que Machado nunca replicou as ofensas por acreditar que a controvérsia é um tédio. (MELLO, 2011; BARIANI, 2007)
Em algumas passagens podemos também entrever a possibilidade do conto refletir a relação que possuía com seus críticos ferrenhos, a exemplo desta passagem:

— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

Trata-se de um conto moralizante, num misto interessante de sátira, paródia e comicidade que projeta a contradição inerente ao ser humano sendo as imagens dispostas das personagens a inconteste influência de Rabelais, citado em determinada passagem do conto.
A relação Deus/religião, homem/razão, Diabo/mesquinhez evidencia a discussão efetuada entre religiosidade como catalisador das transformações de incertezas humanas via fé paralela a eficácia da benevolência natural do homem notadas na maneira como elabora o dialogo do Diabo ao questionar a falsa devoção e simulação religiosa dos homens e suas práticas salvacionistas, por vezes proibidas e mercadejadas.
No trecho "[...] O Diabo, inconformado com atitudes das mais curiosas e surpreendentes, deparou-se com o grande Mal verdadeiro; a contradição humana.” Para Deus o homem pode redimir-se a si mesmo basta o arrependimento verdadeiro, a prática dos bons atos para resgatar-lhe dos pecados.
Nota-se que o movimento Realista expandiu-se por diversos âmbitos culturais, aqui destacamos a literatura, deixando entrever as discussões que transitavam naquele momento: cientificidade, racionalismo, nacionalismo, eugenia, nacionalismo.
No conto em analise encontramos o diálogo entre Deus e seu anjo renegado, o Diabo, rodeado de alegorias, símbolos, humor trágico e amargo característica marcante da literatura machadiana.
É evidente o pessimismo com que Machado divisa a alma humana, expondo via análise psicológica e tipificação social as possibilidades de julgamento dos atos, máscaras e contradições humanas, exposta no conflito com o meio físico e social, pela lógica da causa e efeito e pela explicação do comportamento humano como fator determinista e positivista.
Portanto, neste ponto o autor dialoga acerca do que é pecado, sobre a percepção maniqueísta, as contradições humanas, os dogmatismos, via jogo de palavras faz um retrato caricato do mundo e dos Homens. Estes oscilam divididos, em eterna dúvida, entre a luta do Bem e do Mal dentro de si mesmo, em grande contraste e refletidos em suas ações biopsicossociais.
Por fim, identifica-se que o neste período da literatura, os maiores expoentes, dentre os quais Machado, descrevia e vestia a realidade com a capa da neutralidade. Todavia, nada é neutro. Toda escolha reflete uma subjetividade, uma posição e postura diante do objeto a ser analisado, descrito, preferido e preterido inseridos num contexto histórico, temporal e espacialmente demarcados. 
Assim, o método analítico de observação psicológica, tipificação social e racionalista envolvendo o autor/leitor reflete idéias de um determinado grupo e sua conexão com o momento ideológico.
Pode-se aferir que pautado nas analises até o momento efetuada que o autor tentar trazer em seus trabalhos elementos que buscam perpassar a simples coleta de dados e fatos, mas, acima de tudo, a perceber como esses podem corroborar para a sociedade na tentativa de encontrar respostas as indagações elaboradas pelos sujeitos que a compõem deixando transparecer sua percepção pessimista da sociedade.


REFERENCIAS

ASSIS, Machado de. A Igreja do Diabo. In: História Sem Data. Rio de Janeiro: Garnier, 1884. Disponível em: http://www.bibvirt.futuro.usp.br Acesso em: Agos. 2011.
BARIANI, Edison. Machado de Assis e as críticas de José Veríssimo e Sílvio Romero. Trabalho apresentado em conferência no I Colóquio da Faculdade Santa Rita (FASAR) “Machado de Assis, cem anos depois”, 2007. Disponível em: http://www.achegas.net/numero/40/bariani_40.pdf Acesso em: Agos. 2011.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções Ltda, 1999.
FERREIRA, Geraldo Aparecida da. Memórias Póstumas de Brás Cubas e Coração, Cabeça e Estômago – Machado De Assis e Camilo Castelo Branco: leitores e críticos do Romantismo. São Paulo, 2007.
LITERATURA. Universidade para Todos. Módulo II. Governo do Estado da Bahia, 2006.
MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. Sílvio Romero vs. Machado de Assis: crítica literária vs. literatura crítica. Disponível em: www.anpoll.org.br/revista/index.php/rev/article/view/24/12 Acesso em: Agos. 2011.
NOGUEIRA JUNIOR, Arnaldo. Machado de Assis. Disponível em:  http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp Acesso em Agos.2011.
TUFANO, Douglas. Estudos da língua e literatura. São Paulo: Ed. Moderna, 1999.




O assunto é... PLÁGIO.

Dado ao grande número de interrogativas efetuadas acerca da propriedade intelectual e transcrições (até onde e como fazê-lo) acredito ser interessante estar possibilitando aos leitores o conhecimento quanto a Lei 9.610, de Fevereiro de 1998. Tal lei aborda a regulamentação dos direitos autoriais no Brasil.

Todos podem ter acesso a Lei, na íntegra, através do link abaixo:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm